Vem, Menino Jesus! – Parte II
Pouco antes do Natal, no dia 17 de dezembro, a professora inventou um estratagema cruel, com o qual pretendia dar um golpe mortal nas “superstições ancestrais” que infestavam a escola. E preparou a cena com todo o entusiasmo. Naturalmente, a pobre Ângela foi a vítima escolhida. Com voz doce, a professora a interrogou:
─ Dize-me, minha pequena: quando os teus pais te chamam, o que fazes?
─ Vou imediatamente ─ respondeu Ângela com timidez.
─ Muito bem! Tu ouves chamar e vais logo, como filha bem educada e obediente. E se teus pais chamarem um limpa-chaminés, o que acontece?
─ Ele vem ─ respondeu Ângela. O seu coraçãozinho pulava desordenadamente. Pressentia uma cilada, mas não sabia qual seria.
A professora prepara uma cilada para Ângela
A professora tinha uma expressão falsa, traiçoeira, os olhos brilhavam como os de um gato que brinca com um ratinho. Mais tarde as alunas contaram-me também:
─ Sentíamos medo. Ela tinha o ar tão mau, tão mau!…
O interrogatório continuou:
─ Muito bem! Muito bem! Tu vens porque existes. O limpa-chaminés vem, porque existe. Ele existe!
Após um breve e deliberado silêncio, ela prosseguiu:
─ Mas supõe agora que teus pais chamam a tua avó, que já morreu. Ela vem?
─ Não, não pode vir…
─ Bravo! Muito bem! E se eles chamarem o “Barba-Azul”, ou a “Princesa de pele de burro”? Tu conheces essas histórias. Dize-me: eles vêm?
─ Não, não vêm, porque só existem nas histórias.
Ângela ergueu os olhos para a mestra e baixou-os logo. Sentiu que o olhar dela a transpassava, lhe fazia mal. Mas o diálogo continuou:
─ Esplêndida resposta! Parece que hoje estás mais esperta… Reparem, minhas filhas, reparem todas: os vivos, os que existem, respondem quando os chamam. Os outros não respondem, não vêm, porque não estão vivos ou porque não existem. Compreendem, não é?
─ Sim! ─ responderam em coro.
─ Agora vamos fazer uma pequena experiência ─ e voltando-se para Ângela, ordenou-lhe: ─ Sai, minha filha.
A garota hesitou. Depois levantou-se do banco, saiu, e a porta fechou-se pesadamente sobre a sua figurinha miúda.
─ Agora, meninas, chamem-na!
─ Ângela! Ângela! ─ gritaram trinta vozes de garotas, convencidas de que estavam participando de uma brincadeira, um jogo que as divertia. Ângela entrou, intrigada, sem saber o que pensar. A professora preparava-se manhosamente para saborear os frutos do seu maquiavélico plano.
─ Afinal, estamos todas de acordo. Quando chamamos aqueles que vivem, que existem, eles vêm. Quando chamamos os que não existem, eles não podem vir. Ângela está aqui, viva, em carne e osso, ouviu que a chamamos e veio ter conosco. Suponhamos que chamássemos o Menino Jesus. Parece que há entre vós quem acredite nele…
Houve um silêncio, de medo talvez. E aquelas vozes tímidas responderam:
─ Acreditamos!
─ E tu, Ângela, crês que o Menino Jesus te ouve, quando o chamas?
A professora pediu a Ângela que chamassee a
Jesus para demonstrar que Ele não existe
Ângela sentiu-se bruscamente esclarecida. Eis a cilada que ela pressentira, mas da qual desconhecia a perversidade, e respondeu com ardente fervor:
─ Sim! Creio que Ele me ouve!
─ Muito bem! Façamos a experiência: as meninas viram que Ângela, quando a chamávamos, veio imediatamente. Se o Menino Jesus existe, Ele ouvirá que O chamam. Gritem todas, ao mesmo tempo e com força: “Vem, Menino Jesus!” Vamos! Um, dois, três! Vamos! Chamem!
As crianças baixaram as cabecinhas. Um silêncio pesado, angustioso, desceu sobre elas. Gertrudes soltou uma gargalhada prolongada, diabólica:
─ Vamos! Eu quero que vocês O façam vir! Quero que me provem que Ele existe!… Ah! Não se atrevem a chamá-lo, porque sabem que o vosso Menino Jesus não virá!… E sabem por que não vem? Porque Ele não existe, não ouve, é como o “Barba-Azul”, como a “Princesa de pele de burro”, que são apenas mitos, histórias para as velhas contarem nos serões. Histórias que ninguém toma a sério!…
Intimidadas, as garotas continuavam caladas. Mas os argumentos da mestra as tinham impressionado, ferido em pleno peito. É preciso desconhecer a psicologia infantil, para não avaliar a angústia dessas crianças ante a argúcia duma mulher experiente e malévola, que executava um plano preconcebido. Em algumas a dúvida surgia, como me confessaram mais tarde.
─ Sim! ─ insistia a mestra ─ se Ele existe, por que não vem?
Ângela continuava de pé, pálida como uma morta. As suas companheiras receavam, ao vê-la assim, que caísse ao chão. A professora saboreava a aflição das alunas. Enfim, triunfava e esmagava a fé naquelas pequeninas almas…
Ângela chamou: “Vem Menino Jesus”
e Ele apareceu!
De repente, o imprevisto se deu. De um salto, Ângela atirou-se para o meio da sala. Nos olhos, tinha um clarão de esperança confiante. Olhou em volta e gritou:
─ Ouçam-me! Vamos chamá-lo! Gritemos todas: “Vem, Menino Jesus!”.
Num instante, todas se puseram de pé, com as mãos erguidas numa prece, os olhos brilhantes, os corações a pulsar numa imensa esperança. Num uníssono vibrante, as suas vozes se ouviram:
─ Vem, Menino Jesus!
A professora não esperava esta súbita reação. Instintivamente recuou, com os olhos fitos em Ângela. Um silêncio profundo se seguiu, pesado como uma lenta agonia. Depois, de novo se ouviu aquela vozinha de cristal:
─ Vamos! Chamemos mais! Gritem muito algo!
E um clamor forte, imenso, capaz de transpassar as paredes, vibrou:
─ Vem, Menino Jesus! Vem, Menino Jesus!
O medo, a dúvida, por um momento jugulados, podiam renascer, mas o sentido da camaradagem deu o impulso que as reuniu em torno daquela que se revelava “chefe” e esperava o milagre. Tinham os olhos fitos, não na porta, por onde poderia entrar o Menino, mas na parede branca, em que se destacava a figurinha de Ângela, e continuavam a repetir:
─ Vem, Menino Jesus!
Nesse instante a porta abriu-se sem ruído, e as crianças pensaram que toda a luz do dia entrava por ela. Era uma claridade intensíssima, que crescia, crescia, como a chama violenta dum enorme fogo. No meio desse clarão, um globo cheio de luz. O medo invadiu-as, mas nem tiveram tempo para gritar ou fugir: o globo abriu-se e apareceu um Menino lindo e risonho, como nunca tinham visto. O Menino sorria sem proferir uma palavra, e todas sorriram também, tranqüilas e contentes. Algumas garotas esfregavam os olhos, para melhor contemplarem o Menino vestido de luz, outras olhavam-no de olhos espantados, sem pestanejarem. O Menino sorria, não falava, sorria para todas.
Depois o globo fechou-se, de mansinho, e desapareceu devagar. A porta cerrou-se sem que ninguém lhe tocasse, e as crianças emocionadas, os coraçõezinhos inundados de felicidade, sem uma palavra abraçavam-se, a chorar de felicidade. O Menino as ouvira! O Menino viera!
Que tempo durara a aparição? Uns instantes? Uma hora? Cada criança calculava a seu modo, ao testemunhar a aparição do Menino. Todas diziam:
“Estava vestido de branco, e parecia um sol pequenino”.
As crianças olhavam ainda a porta. Subitamente, um grito agudo quebrou a emoção desse silêncio. Aterrada, olhos esgazeados, braços estendidos, mãos enclavinhadas, a professora gritava como louca:
─ Ele veio! Ele apareceu!
Em seguida fugiu, batendo com força a porta. Ângela mexeu-se, enfim, como quem desperta dum sonho:
─ Vocês viram?
─ Sim, vimos!
─ Ele é que trazia a luz ─ dizia uma.
─ A luz do dia é negra, comparada àquela claridade ─ acrescentava outra.
─ Vocês viram? ─ repetia Ângela ─ Ele existe!
Toda a gente falava deste acontecimento, que as crianças contavam maravilhadas. Os pais vieram ver-me, acompanhados das filhas. Interroguei-as, uma por uma. Pois bem, posso declarar, sob juramento, que nas suas palavras não encontrei contradições. Isto surpreendeu-me, tão extraordinário era o que se tinha passado. Uma garota dizia-me, muito satisfeita:
─ Senhor, nós estávamos com muito medo, e bem precisávamos que o Menino nos acudisse…
O fato ficou famoso e a
professora enloquecceu
O mundo inteiro já conhece este fato. Mas agora devo dar o epílogo. A Sra. Gertrudes deu entrada num manicômio. O cérebro ressentiu-se do tremendo abalo que sofreu, e não cessava de repetir: “Ele veio! Ele veio”. Tentei visitá-la. Em vão, pois recusam absolutamente entrada aos padres nas casas de alienados. É que são freqüentes os casos de obsessão religiosa… Os profanadores de igrejas, em geral, acabam loucos. Todos os dias, ao celebrar a Missa, rezo por ela e por todos.
Concluídos os exames, Ângela foi para casa, ajudar a mãe. É a filha mais velha dum rancho de irmãos. A minha partida precipitada nada mais me deixou saber a seu respeito.
(Maria Minovskca, in “Magnificat”, Ano XVI, Nº 2, fevereiro/março de 1966 – Braga, Portugal)
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